Por um mundo onde ninguém sinta saudades da Amélia

“Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre.”
(Simone de Beauvoir)

4,621. Esse foi o número de mulheres assassinadas no Brasil só no ano de 2015, o que corresponde a uma taxa de 4,5 mortes para cada 100 mil mulheres, em um crescimento de 7,5% de homicídios entre os anos de 2005 a 2015. Os dados retratam informações do último mapa da violência no Brasil, divulgado em 2017.

Além do machismo, o mapa da violência traz estampado a cara do racismo no Brasil. A taxa de mortalidade entre mulheres negras aumentou. Também cresceu a proporção de mulheres negras entre o total de mulheres vítimas de morte por agressão, passando de 54% em 2005 para 63,3% em 2015, numa perversa combinação intersecional entre racismo, gênero e condição social.

A maioria das mortes são oriundas de um contexto progressivo de violência, o que significa que as mulheres vítimas de violência fatal também foram vítimas de outros tipos de violência, como a patrimonial, a física, psicológica ou sexual, em um movimento crescente de agravamento da agressão até o ato de homicídio.

76.651 relatos de violência praticadas contra a mulher registrados no ano de 2015.

50,16% corresponderam à violência física 2

Mulheres de Atenas
“Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem imploram
Mais duras penas;”
(Chico Buarque)

A maioria dessas denúncias são feitas em face dos parceiros. A Central de Atendimento à Mulher registrou que em 49% dos casos o agressor era o próprio marido ou companheiro, 21%, o ex-namorado, ex-marido ou ex-companheiro e 3% o namorado, somando um total de 73% de mulheres agredidas em uma relação afetiva com uma pessoa do sexo oposto.

As soluções apresentadas pelo Estado diante dessas constantes violações variam desde cirurgias plásticas oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para as mulheres vítimas de uma violência, que não deveria ocorrer, até o aumento do encarceramento de seus maridos, muitas vezes únicos provedores da família.

Nada seria mais trágico se o instrumento mais eficaz no combate a essa violência não fosse a edição de uma Lei, que recebe o nome de uma mulher guerreira que possui as marcas vivas em seu corpo das consequências dessa cultura machista, Maria da Penha.

A lei que prevê, em seu art. 20, a possibilidade de o juiz decretar a prisão preventiva do agressor em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal ao meio de uma série de medidas louváveis em relação à mulher e em relação ao agressor, visando cessar atos que põe em risco a integridade física e mental da vítima, apesar de todos os esforços na sua criação, não passou imune às críticas, conforme reforça Celme e Azevedo (2007.p.17) citado por Daniel Achutti: “tais medidas em um contexto criminalizante, poderão ser colonizadas pelas iniciativas tendentes à punição dos supostos agressores, ainda que antes do trânsito em julgado de eventual sentença condenatória”.

A contundente crítica se soma ao despreparo do sistema de justiça em enfrentar o problema, o que faz com que a Lei Maria da Penha seja constantemente deturpada e ofuscada pelo ordenamento jurídico que compreende como solução imediata para essas vítimas penas mais duras para os pais de seus filhos, filhos das populações mais carentes. Eis a razão pela qual a legislação não produziu significativos índices de diminuição de violência contra a mulher. Pelo contrário, Conforme dados extraídos do Mapa da Violência de 2012, de 1980 a 1996, houve um aumento médio anual de 4,6% no número de homicídios de mulheres, e de 1996 a 2006, essa taxa caiu para 0,9%. Em 2007 – dada do início da vigência da Lei Maria da Penha – houve uma queda significativa, que talvez se deva a agenda política em torno da violência contra a mulher, forçada por campanhas de conscientização que ocorreram junto a edição da Lei. Apesar disso, a partir de 2008, as taxas voltaram a subir, passando recuperar os índices anteriores.

Nesse contexto, não bastando todo esse disparate entre as garantias asseguradas às mulheres por aquela lei e o que lhe é efetivado na prática, afastando do seu cumprimento a justiça restaurativa, que poderia atuar como uma constante na educação dos agressores e na conscientização da população, vem a alta cúpula do judiciário, através do Superior Tribunal de Justiça, editar enunciado de súmula (536) cujo teor versa pela impossibilidade de aplicação de institutos como a suspensão condicional do processo e a transação penal para os delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha.

Essa ideologia simbólica do direito penal como solução, extremamente sedutora, na ausência de discussão sobre as contradições que existem entre as funções declaradas da pena e as funções latentes que operam de forma inversa as declaradas, faz com que o agressor retorne a sociedade mais violento do que outrora, na época em que dela foi expulso. É que muitas vezes o homem agressor nada mais é do que um opressor oprimido pela sociedade, que submetido as razões inversas da pena passa a se viver de forma mais intensa o comportamento negativo que lhe foi impregnado.

E assim, por medo, por compaixão, por amor aos seus filhos e diante da ausência de igualdade que lhe proporcione autonomia de novas perspectivas, muitas delas conhecem o arrependimento amargo da denúncia ofertada e reatam com seus marido sob o veredito da incompreensão de um judiciário conservador e sem preparo para enfrentar as complexidades dessas violações sistemáticas. E nesse sistema que não apresenta apenas Marias da Penha, com o rosto da mulher da classe média e a reputação da idealizada “mulher honesta”, nesse sistema composto por muitos outros homens além das figuras tarimbadas dos concursos públicos, Tício, Caio e Mévio, os operadores do direito parecem fracassar.

Dos casos de violência registrados, 7,25%, violência moral e 4,54%, violência sexual;

Geni
“Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
(Chico Buarque)

As agressões atribuem às mulheres uma condição de subalternidade que, dentro da sociedade, caminham entre a cultura do certo e do errado, entre o proibido e o permitido, entre o moral e o imoral, criando padrões comportamentais violentos por parte de toda a coletividade e conseguindo a cumplicidade dos sistemas que deveriam combatê-las.

Chega-se a um momento em que um agressor vem a público justificar a agressão gratuita a uma empregada doméstica com o fato de confundi-la com uma prostituta. Chega-se a um momento em que o ato tipicamente feminino, como é o de amamentar, acaba sendo confundido com falta de educação. Assim, lamentavelmente, a reprodução de um discurso machista se aperfeiçoa, ganhando espaço na voz, inclusive, de mulheres que, muitas vezes, também sofrem com esse descaso.

Nesse cenário, de tanto caminhar pelas paredes do maniqueísmo, em que a obra desenhada pelo homem insiste em querer arrogar para si papel de superioridade pelo bem da humanidade, a discussão de qualquer assunto que remeta à igualdade vira pauta partidária, e qualquer abordagem educacional sobre violência de gênero passa pode ser capitulada como doutrinação ideológica de esquerda.

Dos relatos de violência, 30,33%, violência psicológica

Amélia
“As vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado dizia
Meu filho o que se há de fazer”
(Chico Buarque)

As soluções apresentadas para esse quadro também refletem uma cultura opressora: a obrigatoriedade de realização de parto normal, quando a tônica é a humanização dos partos; quando a violência obstétrica se manifesta no direito da mulher estar com um acompanhante; quando a parturiente continua a ter suas mãos amarradas, além de sofrer muitas vezes humilhações e xingamentos por parte da equipe médica. Outro exemplo não menos trágico é a tentativa de equiparação da idade na aposentadoria entre homens e mulheres, somado à precarização de seus empregos, a falta de creches para abrigar seus filhos, a uma jornada dupla, tripla, que se multiplica entre a casa, filhas (os) e trabalho;

Assim, a estruturação de uma sociedade capitalista patriarcal sustenta boa parte da concentração de renda no homem, ainda na insistência que esse seria um ser superior e merecedor de privilégios dentro da sociedade; sobrevive da exploração da feminilidade das mulheres em bens de consumo como roupa e maquiagem e ofusca a história de mulheres de glória, fazendo das complexidades sociais e culturais um terreno fértil para a disseminação do preconceito e a aceitação por boa parte das mulheres do papel inferior que lhes é outorgado.

Maria
“Maria, Maria,
Mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha,
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre”
(Milton Nascimento)

Diante de tudo isso, às mulheres conscientes resta fugir do exemplo das mulheres de Atenas, lutar contra todas as imposições sociais, descruzar os braços diante daquilo que se apresenta como solução. É o caso das mulheres do Grupo da Cidadania Feminina de Recife3, que resolveram usar apitos para coibir o horror da violência, intimidar o agressor, ação que inspirou a Associação das Advogadas, Estagiárias e Acadêmicas do Direito de São Paulo (Asas) a distribuir mais de 10 mil apitos como forma de conscientizar a população.4

Ainda no Nordeste, mulheres do interior do Rio Grande do Norte, há 10 anos, a partir de um brutal feminicídio ocorrido em uma praça da cidade, uniram-se na formação de um grupo que levou o nome de Mulheres em Ação, realizando todos os dias 25 de novembro a Marcha da Lanterna Lilás, tendo como o objetivo dialogar com mulheres e homens em memória às mulheres que não baixaram suas cabeças, acendendo a chama da luta. Afirmando que estão em constante alerta contra a violência física e psicológica.

O grupo Mulheres em Ação tem atuado no fortalecimento da auto-organização das mulheres, visando sua autonomia, autodeterminação e pleno desenvolvimento, além de defender e propor políticas públicas que alterem a condição de desigualdade, pobreza e violência contra as mulheres.

O resultado dessas ações deveria servir de exemplo para todos que atuam no combate à violência. Em parcerias com órgãos como ActionAid, com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, Visão Mundial, com a Petrobrás e com prefeituras locais na construção de uma sociedade mais igual, a atuação do grupo conseguiu erradicar uma favela inteira, construir uma praça de lazer na comunidade, criar um programa de rádio, trabalhando intensamente na conscientização de homens e mulheres, além da importante concretização de uma cooperativa de mulheres prestadoras dos mais variados serviços.

Glisiany Plúvia
Também uma Maria

Glisiany Plúvia de Oliveira é uma dessas mulheres. A estudante do curso de Gestão Ambiental – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte é uma das coordenadores militante do grupo Mulheres em Ação. A militante relatou, em entrevista concedida para a realização desse artigo, que a atuação do grupo tem encorajado muitas mulheres a denunciarem agressões e mudarem de vida. Também observou mudanças positivas em relação aos homens. Embora a reação de muitos deles seja carregada de preconceito, a maioria deles já foi educada e conscientizada, passando a apoiar a atuação do grupo.

Apesar de todas essas conquistas, Plúvia de Oliveira lamenta que ainda hoje, às vezes, dizer não ao machismo significa dizer não a própria vida e se emociona ao relatar que ainda hoje ocorrem brutais assassinatos de mulheres por parceiros que não aceitaram o rompimento dos relacionamentos.

Plúvia, assim como Maria da Penha, é mais uma Maria, “uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta”. Plúvia é mais uma mulher que luta para mudar o mundo e segue na marcha até que todas sejam livres.

Ao lado de Plúvia de Oliveira, muitas mulheres caminham para que um dia Geni possa namorar quem ela quiser, até ficar saciada, sem que ninguém venha a lhe cuspir, sem pedras, sem bosta, sem cálices e sem hóstias… Sem “cale-se”.

Com a consciência de quem não pode parar, caminham lado a lado mulheres como essas para até o dia em que Capitu, quebrando as regras da sociedade patriarcal, senhora de si, deixe de ser vista apenas sob os olhos de um homem e possa ser desvinculada do papel de personagem viva da narração alheia, como na obra de Machado de Assis e ao lado delas, convido todas as outras a lutarem para que a Senhora, Aurélia Camargo, de José de Alencar, sem a hora da estrela, possa emergir e se auto afirmar, independente dos papéis sociais ditados, em uma sociedade onde não haverão lugares previamente delimitados. Então, nesta hora, na hora da estrela, Macabéa, moça humilde do interior, poderá seguir seu sonho, seja ele qual for, pois será maior do que a dor.

Nesse sonho, Plúvia, assim como muitas outras, só deseja “mudar o mundo para mudar a vida das mulheres e mudar a vida das mulheres para mudar o mundo”. Assim, chegaremos ao momento em que todas seremos Sofias dos nossos mundos, em um mundo em que ninguém sinta saudades da Amélia. Só, então, poderemos deixar de contar números trágicos para contar uma nova história.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas Mãos da Criminologia: o controle penal para além da (des) ilusão/Vera Regina Pereira de Andrade – Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. Março de 2014.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997.

ALENCAR, José de. “Senhora”. In ALENCAR, José de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1959a, vol. I.

ACHUTTI, Daniel Silva. Justiça Restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil/ Daniel Silva Achutti. – 2 ed. – São Paulo, 2016.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Dados nacionais sobre violência contra a mulher. Disponível em: http://www.compromissoeatitude.org.br/dados-nacionais-sobre-violencia-contra-a-mulher/

Mapa da violência de 2015. Disponível em http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2015_mulheres.php

1 Defensora Pública do Estado da Paraíba. Bacharela em Direito, pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Pós graduanda em Direitos Humanos, pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Pós graduanda em Direito Processual Civil, pelo Instituto Elpídio Donizete.

2 Disponível em: http://www.spm.gov.br/assuntos/violencia/ligue-180- central-de- atendimento-a-

mulher/balanco180-2015.pdf

3 Disponível em http://tvbrasil.ebc.com.br/maisdireitosmaishumanos/episodio/apitaco-e-arma-diante-da-violencia-contra-a-mulher-em-recife

4 Disponível em http://asasadvogadas.org.br/nao-hesite-apite/

Por um mundo onde ninguém sinta saudades da Amélia

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