RESUMO
Este artigo pretende analisar o processo de construção institucional de teses da Defensoria Pública e seu impacto no princípio da independência funcional. A proposta apresenta a Defensoria Pública como instituição transformadora da realidade social a partir da atual configuração constitucional e aborda o papel do defensor público diante desse modelo orientado pela finalidade de desenvolver e fortificar uma entidade institucional perante o sistema de justiça.
Palavras-chave: Defensoria Pública, processo de construção de teses institucionais, princípio da independência funcional e papel do defensor público
INTRODUÇÃO:
Nos últimos anos a Defensoria Pública tem ganhado destaque no sistema de justiça conquistando um espaço singular dentro do Estado Democrático de Direito como função essencial à justiça, inclusive tendo sua autonomia administrativa e financeira sido reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal como preceito fundamental¹, pois sem a qual não há como vislumbrar a Constituição, uma vez que esta conforma a essência do conjunto normativo-constitucional (TAVARES, 2001, p. 124).² Apesar disso, por ser recente a sua formatação atual, a Defensoria Pública tem enfrentado inúmeros desafios na efetivação dessa autonomia e na construção de uma identidade institucional.
Nesse contexto de construção de uma identidade institucional surge um importante de instrumento: as teses institucionais, criadas no âmbito de cada Defensoria Pública e também em nível nacional. Apresentam-se em forma de ementa fixando um entendimento da instituição que orienta a atuação desenvolvida por cada Defensor Público.
Questão polêmica a respeito do assunto é saber se tais enunciados teriam caráter vinculante ou não, devendo sua aplicação ser harmonizada com o princípio da independência funcional, sobretudo para fazer valer a atual configuração atribuída à Defensoria Pública pela Constituição, que difere em vários aspectos da simples advocacia em favor dos pobres.
Este artigo, portanto, pretende analisar os limites da independência funcional diante dos enunciados de teses institucionais. Para isso, será delineado o papel da Defensoria Pública no ordenamento jurídico brasileiro e serão expostas as razões pelas quais os enunciados de teses se apresentam como um instrumento de fortalecimento da configuração atual da Defensoria Pública fazendo-se uma ponderação com o princípio da independência funcional à luz da teoria administrativista do órgão.
A DEFENSORIA PÚBLICA ENQUANTO INSTITUIÇÃO TRANSFORMADORA DA REALIDADE SOCIAL
Em todas as épocas da humanidade, em quase todo o mundo, quando se reuniam condições históricas que propiciavam desigualdades sociais entre pessoas, surgiam ideias transformadoras dessas desigualdades. Na antiguidade, em um época de grandes desigualdades sociais, a Lei de Moisés consolidou o primeiro mandamento de isonomia entre os homens; tempos depois, o Código de Hamurabi, trouxe o de objetivo “estabelecer igualdade entre os fortes e combalidos” (RÉ, 2013, p. 121); ainda, no direito romano, antes mesmo de a tirania fazer surgir as primeiras noções de igualdade incutidas forçadamente na Magna Carta pelo rei João Sem Terra 1.215, quando a ausência de condições financeira das partes, obstava-lhes o acesso à Justiça, nasceram as primeira ideias sobre patrocínio público de advogado, que foram estendidas por todo o ocidente e foi essa dialética que fez a humanidade se reinventar e evoluir.
No Brasil, o primeiro marco do acesso à gratuidade da justiça não foi diferente. Os prenúncios a surgiram exatamente em um contexto de opressão, quando José de Oliveira Fagundes, em 1791, foi nomeado pela Alçada Régia para defender os 29 inconfidentes, presos nas cadeias do Rio de Janeiro.
Não resta dúvida de que esse foi um importante marco no trajeto de acesso à justiça e redução das desigualdades sociais, pelo qual merece ser registrado, mesmo sem a pretensão de aprofundamento nessa conjuntura. Mas, tal fato, se isolado em seu contexto, não seria suficiente para transformar a realidade social. Não teriam o peso histórico que tem se dele não tivesse brotado um ideal: a Defensoria Pública, hoje, instituição responsável pela ampla defesa dos necessitados, como anunciou no ano de 1866, o então presidente da Ordem de Advogados Brasileiros, Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo como o imortalizado questionamento: “Que importa ter uma reclamação justa, se não podemos apresentá-la e segui-la se por falta de dinheiro?”
Eis que tempos depois desse episódio, em 1897, é criado o primeiro órgão público de assistência jurídica no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro e em 1934 os “órgãos especiais” visando assegurar o acesso à justiça aos necessitados. Órgão que foi suprimido na Constituição Polaca, de 1937, sendo novamente incorporado com a EC 01/1967.
Somente em 1988, nasce, junto ao Estado Democrático de Direito, a Defensoria Pública, como função essencial à justiça, tendo o papel primordial a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados. Nasceu como uma flor que rompe o asfalto nos dias mais quentes. Como no poema de Drummond, nasceu furando o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio³. Nasceu para que a justiça não pudesse atender apenas aos mais fortes, aos poderosos, àqueles capazes de movimentar a máquina da justiça. São as palavras do Constituinte Silvio Abreu, citado por ROCHA (2013, p. 59), proferidas na 9ª reunião ordinária da Constituição de 1988, realizada em maio de 1987:
[…] Se não dermos à defensoria pública a dimensão de que ela realmente está a necessitar, com independência, com segurança, com objetividade, com uma série de prescrições imprescindíveis ao cumprimento de sua missão, estaremos criando concomitantemente uma Justiça bisonha, fraca, que haverá de existir apenas em tese e que transformará a Constituição, no âmbito judicial, em letra morta, capaz de atender tão somente a 20% da população deste País.
Já naquele momento, o protótipo de Defensoria passou a se desenvolver através de um modelo jurídico denominado Salaried Staff Model, onde há remuneração de agentes públicos pelo Estado para realizarem assistência jurídica gratuita4. Trata-se de comando constitucional cujo dispositivo traz expressamente a obrigação do Estado de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados por meio da Defensoria Pública.
É relevante destacar que tal modelo traz inúmeros benefícios ao sistema de justiça, uma vez que possibilita a organização da carreira com dedicação exclusiva, não sendo permitido aos seus membros advogar na forma privada, nem mesmo em causa própria. Além disso, a contratação é feita por meio de concurso público, o que permite uma melhor obediência ao princípio da eficiência, através do controle correcional; permite, ainda, especialização da atividade; além da possibilidade de atuação coletiva na solução dos conflitos, facilitando o desenvolvimento do que viremos a denominar de “litígio estratégico”.
A proposta constitucional, ainda, vai além, coloca a Defensoria Pública como instrumento e expressão do regime democrático, ou seja, é a materialização da democracia, tendo como missão garantir ampla participação do povo na esfera pública, assegurando o respeito às minorias, de modo que seus membros devem atuar como agentes limitadores a uma maioria que possa levar esse regime à tirania. É a guardiã ímpar do progresso humanitário (GALLIEZ, 2008, pág. 8),. É guardião da esperança e é também o meio de alforria da escravidão rebatizada, nas palavras de ROCHA (2013. Pág 63):
A luta pela abolição perdura diante de uma escravidão rebatizada, pois não se pode considerar livre quem não tem onde morar, não tem direito ao registro de nascimento, não pode se expressar livremente, não teve um julgamento justo, não conhece seus direitos, não é ouvido em projetos que lhe atingem, sem esquecer do que tem chamado de “criminalização dos movimentos sociais”, entre muitos outros exemplos. Nesse contexto de “nova escravidão”, a Defensoria surge como uma NECESSIDADE da efetivação de direitos5.
Assim, tem o Defensor Público a função de buscar valer as promessas constitucionais com fim maior de se garantir igualdade de oportunidade entre as pessoas, sempre no rumo da (r)evolução, seja por intermédio do Poder Judiciário, seja por meio de parcerias, seja aprofundando o diálogo com os “tomadores de decisões”, com os “formuladores de políticas públicas” e com a sociedade civil em geral.
Deveras, o progresso da humanidade depende da igualdade material entre os homens e nesse mister a Defensoria Pública tem a função de limitar o poder, não podendo, portanto, confundir-se com este. Nesse ponto, cabe ilustrar o texto com a famigerada lição de Amilton Bueno de Carvalho “a Defensoria Pública não pode ser poder, ela tem claro que todo o poder tende insuportavelmente ao abuso, que o poder ‘imbeciliza’ (Nietzsche), que o poder não suporta a alteridade, que o poder necessita, em consequência, de verdade absoluta (Bauman)” (CARVALHO, 2015). O Defensor Público, portanto, é responsável não apenas pela defesa técnico-jurídico dos necessitados, sendo agente de transformação social, com o dever de amparar socialmente a parcela vulnerável da população, principalmente, quando em conflito com a classe dominante.
Para consecução de todos esses objetivos, sobretudo no que diz respeito à limitação do poder, foi necessário que o legislador constituinte derivado dotasse a Defensoria de autonomia. No entanto, tal reconhecimento em nosso país, surgiu como um antídoto contra promessas legislativas inconsequentes. Mas, aconteceu de forma lenta e gradual, por meio de emendas constitucionais e ainda hoje carece de efetividade em alguns Estados. Primeiro, a Emenda Constitucional nº 45/2004 conferiu autonomia à Defensoria Pública Estadual. Em 2011, a Emenda nº 69/2011 conferiu autonomia à Defensoria Pública do Distrito Federal. Por fim, a Emenda nº 74/2013, estendeu a autonomia funcional e administrativa às Defensorias da União.
Se “acesso à justiça é o direito-mãe de todos os outros” (ROLIM, 1995, p. 13), a Defensoria é o ventre gerador desses direitos e, a sua autonomia, a saúde necessária para reproduzi-los. Efetivá-la no plano prático é o primeiro passo para que seja possível a proteção jurisdicional de milhões de pessoas que estão à margem da linha de pobreza. Deveras, a autonomia da Defensoria Pública é um elemento de realização do Estado Democrático de Direito, pois é ele quem vai definir o peso da defesa em detrimento da acusação, o peso do direito de não ser considerado presumidamente culpado, como já delineado por Zaffaroni “pode se afirmar que o grau de realização do Direito em nossa região está dado pela autonomia e poder da Defensoria Pública em comparação com as outras agências do sistema penal” (ZAFFARONI, 2002, p. 20).
É, ainda, a autonomia da Defensoria que permitirá a luta contra os abusos do Estado na invasão da liberdade individual, no esmagamento de minorias qualitativas. É o grau da autonomia que definirá os rumos de uma atuação dialógica com o poder público no desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a parcela da população que, normalmente, costuma cair no esquecimento dos governantes.
Dando continuidade ao projeto constitucional, a Lei Complementar nº 80/94 reconheceu tal instituição como permanente, não podendo ser abolida pelo livre arbítrio de um dos poderes6, comando que foi repetido em 2014 pela Emenda Constitucional 80 que além de atribuir à Defensoria Pública o papel de instituição permanente, o que quer dizer que mesmo que em um futuro utópico inexistam desigualdades sociais, a Defensoria deve continuar a existir, eis que detém a importante função de promover os direitos humanos e exercer a defesa, em todos os graus, dos direitos individuais e coletivos. Além disso, a importante Emenda encerrou qualquer discussão a respeito da vinculação da Defensoria com a advocacia, inserindo-a topograficamente em seção à parte na Constituição7.
Nasce, assim, um ideal de Defensoria com aptidão para mudar a realidade social, traçando um caminho revolucionário de compreensão do Direito na interligação de outras formas de resolução de conflitos sociais. Tal ideal, no entanto, não será transformador se não encontrar espaço na práxis, se a Defensoria Pública não assumir, enquanto instituição, o papel constitucional que lhe é outorgado, para isso é necessário que ela esteja em constante movimento não em busca de ocupar “o trono das instituições que compõem o sistema de justiça”, mas em uma direção oposta a essa, no sentido de transformá-la em um espaço do povo conforme deve ser em uma verdadeira democracia. Sobre o assunto, é relevante citar as palavras do Defensor Público Felipe Kirchner (COSTA, 2014, p.27):
A Defensoria deve ser manter permanentemente em movimento, ciente das novas estruturações dos instrumentos de poder, a fim de que não passe a constituir, ela mesma, em mais uma peça desta engrenagem de alienação e exclusão. E para disso, deve se enxergar permanentemente como uma instituição que integra o Estado, mas que nasceu para modifica-lo substancialmente. Necessitando crescer e se estruturar (por meio de recursos materiais e humanos), é certo que a Defensoria Pública não pode se transformar mais um “elefante branco” imersos em burocracias, assim como o Defensor Público não pode se esquecer ou se afastar de sua origem de servidor público.
O destaque à normativa referenciada surge, justamente, para fazer concluir que a configuração atribuída à Defensoria Pública, sobretudo, pelas referidas emendas constitucionais, incorporam na instituição poderes que permitem a utilização das diversas formas de atuação para transpor os direitos humanos do plano abstrato para o plano fático, “aproximar o país legal do país real”, como diria Oliveira Viana citado ROCHA (2013, p. 67), levando o simbolismo da norma para sua concretização no mundo real, a partir do que se denominou de Justiça Social, uma justiça destinada aos grupos vulneráveis, minoritários, excluídos da tutela estatal e não enquadrados nos padrões da sociedade pós-moderna.
Não foi por acaso que a Comissão Nacional da Verdade, em um relatório sobre as graves violações aos direitos humanos ocorridas durante o período da ditadura militar, resultantes “de ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro” ressaltou como recomendação o “Fortalecimento das Defensorias Públicas”.
Nesse mister, a Constituição galgou trazer a Defensoria Pública como órgão responsável pela reivindicação dos direitos decorrentes de seus objetivos, enquanto o art. 3-Aº da Lei Complementar 80/1994, em importante alteração trazida em 2009 pela Lei Complementar 132, catalogou como objetivos da instituição: a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; a afirmação do Estado Democrático de Direito; a prevalência e efetividade dos direitos humanos e a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
O artigo 4º da mesma lei espelha os mecanismos de atuação da Defensoria Pública, na promoção, difusão e conscientização desses direitos, seja por meio da atuação judicial, seja por meio da atuação extrajudicial, podendo, inclusive, recorrer aos órgãos internacionais para assegurar seus objetivos, com destaque para a atuação de prevenção e educação com o propósito de conscientização a respeitos direitos conferidos pela Constituição especialmente nas comunidades mais carentes, através da participação e assento nos conselhos públicos e na atuação junto ao legislativo, colocando em pauta sugestão de mudanças legislativas.
DA CONSTRUÇÃO DE TESES E ENUNCIADOS:
A Defensoria Pública emerge como instituição de fomento aos objetivos democráticos, rompendo com a noção mecanicista do direito, o que impõe, além do seu uso legal, uma noção humanística no rumo a uma transformação completa de nossa sociedade. Com esse propósito foram criados mecanismos internos de trabalho, como criação de núcleos específicos, grupos de trabalho, capacitações, merecendo destaque o desenvolvimento de teses institucionais, objeto deste estudo. Tais teses, desenvolvidas no âmbito de cada defensoria, têm como função principal definir critérios de atuação dos defensores públicos, conferindo maior segurança jurídica no que diz respeito à atuação da instituição frente a um problema estrutural. Além disso, representa um estímulo à pesquisa e à produção acadêmica sobre temas relacionados à atuação da Defensoria Pública e o seu importante papel Sistema de Justiça brasileiro para a efetivação do Estado Democrático de Direito.
Tal construção reforça a formação de uma identidade institucional e uniformiza o papel da Defensoria Pública, já que conta com a ampla participação de todos os seus membros. Porquanto, o desenvolvimento parâmetros mínimos de qualidade na atuação com a solidificação das propostas institucionais, contribui para o intercâmbio de ideias entre defensores de todo o Estado, através de uma vivência una e indivisível e possibilita o fortalecimento político e jurídico da instituição.
Tal instrumento vem sendo utilizado em âmbito nacional, baseado em pautas assumidas universalmente pela Defensoria Pública, na defesa de direitos humanos, visando fortalecer a imagem da instituição, enquanto instituição una e, ainda, em âmbito local em um roteiro adaptado às peculiaridades de cada Defensoria Pública sempre na defesa dos direitos das populações vulneráveis. Vale mencionar, que são poucas as Defensorias Públicas que utilizam a proposta local, merecendo destaque as Defensorias de São Paulo8, a Defensoria do Paraná9, da Defensoria do Rio de Janeiro10, da Defensoria da Bahia11.
Nesse sentido, a doutrina especializada, capitaneada por PAIVA (2016, p. 54 a 61) elenca como características das teses institucionais: a) excepcionalidade; b) ampla legitimidade democrática c) objetividade do enunciado e d) caráter vinculante
A excepcionalidade deve ser pautada em dois critérios: o critério funcional, ou seja, deve atender ao exercício das funções institucionais e o critério de justiça social, demonstrando que sua aplicabilidade irá proporcionar uma melhor defesa dos assistidos.
A segunda característica diz respeito à participação. É o critério que expressa a verdadeira democracia dentro da instituição, devendo a orientação adotada refletir um majoritário por parte de seus membros. Para isso, a votação e escolha dos mesmos deve ocorrer em um ambiente que possibilite o debate entre membros da carreira. Essa característica é a consolidação do diálogo entre a independência funcional e o princípio da unidade.
Sobre esse critério, há de se mencionar que na falta de uma disposição legal geral a respeito do assunto, cada Defensoria Pública vem disciplinado internamente a forma como será realizado o debate interno para escolha dos enunciados. É interessante observar que nem sempre a edição e seleção de enunciados tem ocorrido meio de uma democracia direta, com a participação de todos os membros, sendo essas funções delgadas aos órgãos superiores da instituição, a exemplo das teses da Defensoria Pública da União (DPU), algo que merece ser criticado, sobretudo se considerarmos que tal sistemática destoa da essência da Defensoria enquanto instituição que expressa o Estado Democrático de Direito. Nesse ponto, consideramos interessante transcrever a posição do Defensor Público Federal, (PAIVA, 2016, p. 54) , a respeito do assunto:
É preciso muito cuidado para definir o procedimento de criação de teses institucionais, principalmente o foro competente para a deliberação e eventual aprovação dos enunciados. A legitimidade da uniformização de entendimento institucional somente é alcançada por meio da democracia. Mas qual democracia? A direta, alcançada pela deliberação entre os próprios defensores públicos, a indireta, com delegação do debate e decisão para órgãos da administração superior cujos membros foram eleitos pela classe (Defensoria Pública-Geral e Conselho Superior), ou ambas? Entendo que somente a democracia direta pode legitimar a edição de enunciados no âmbito da Defensoria Pública. A independência funcional estaria, portanto, sendo relativizada pelos próprios detentores dessa garantia (os defensores públicos), e não por um órgão da administração superior da Defensoria Pública, afastando, assim, qualquer possibilidade de autoritarismo institucional.
Por fim, o enunciado deve ser objetivo, justamente para evitar que a subjetividade venha a dar margens a deturpação do entendimento que tem o caráter vinculante, só podendo deixar de ser observado se motivadamente se demonstre uma forma de atuação alternativa mais benéfica ao assistido.
São esses critérios que fortalecem o reconhecimento de uma identidade institucional. Porquanto, o exercício individualizado por parte de qualquer membro que viole a essência da instituição, além de ferir de morte o pacto democrático, pode colocar e cheque a imagem da Defensoria Pública12perante o sistema de justiça e o prejuízo em razão disso para os que estão à margem da sociedade, relegados pelo poder público, é imensurável13.
OS LIMITES DA INDPENDÊNCIA FUNCIONAL E A TEORIA DO ÓRGÃO
Nesse sentido, a utilização de tal instrumento deve dialogar com a independência funcional do Defensor Público, já que relevante princípio visa fortalecer sua atuação como uma garantia em face de ingerências externas na política da instituição. Não se pode, portanto, permitir que o referido princípio ultrapasse os limites de sua finalidade.
Eis então que tal princípio deve ser ponderado com o princípio da unidade. Não podendo, portanto, se distanciar do fim maior da instituição, que seria trazer dignidade as parcelas excluídas da população. Ressalta-se aqui um ponto distintivo da atuação de Defensores Públicos e Advogados: os primeiros não agem em nome próprio. Agem em nome da instituição, a partir de seus objetivos institucionais, não podendo sua atuação contrariar o fim para a qual fora criada não tampouco contrariar seus objetivos definidos democraticamente no âmbito interno da instituição, sob pena de se comprometer toda uma atuação construída ao longo de anos, prejudicando, com isso, toda uma coletividade.
A essência da Defensoria Pública, portanto, exige do Defensor Público uma atuação para além do peticionamento de direitos, na busca pelo acesso à justiça e este, nas palavras de AMORIM (2017, p. 274):
Não se resume a simples protocolar de uma ação, ou a sentença de um Juiz, trata-se de invocar o Estado (neste caso o Estado-Juiz) para que consagre as premissas da Magna Carta, proporcionando um viver dentro dos parâmetros da dignidade, condizentes a todo ser humano.
Assim, a Defensoria Pública deve atuar como instituição transformadora da realidade social, em uma atuação estratégica que demanda unidade quanto ao que se defende. Nesta toada, ingressando na área administrativa, a partir do princípio da imputação volitiva, que é a base da Teoria do Órgão14, é possível concluir que as ações cometidas pelos agentes de determinado órgão são atribuídas à pessoa jurídica da qual ele faz parte, sendo dela a responsabilidade pela atuação do agente. Cada membro é atributo de um todo, parte integrante da pessoa estatal ao qual pertence. Essa responsabilidade objetiva da instituição, em razão da atuação dos seus membros, reforça, ainda mais, a necessidade de se construir e fortalecer essa identidade institucional.
O papel de litigante organizacional, intrínseco à noção de Defensoria Pública, se relaciona, ainda, com o princípio da cooperação, que demanda aplicação não só no âmbito processual, mas também na atuação interna da instituição. A inspiração do princípio a partir do processo civil português, adotada pelo processo civil brasileiro, traz a noção de que todos os sujeitos envolvidos, ainda que indiretamente no processo, devem colaborar entre si para um resultado breve e eficaz da justa composição do litígio.
A finalidade principal dessa atuação harmônica é transformar o exercício de seus membros em uma “biocenose laboral”, como trabalhadores de uma construção civil, cuja obra final a ser erguida é a transformação social, revertendo o status quo de exclusão que prevalece atualmente nas relações sociais. Uma construção na qual as teses institucionais seria o alicerce e o restante da obra dependeria da atuação conjunta de todos os membros, podendo o trabalho “equivocado” de um prejudicar a formação do todo.
Tal raciocínio suscita uma sequência de outros deveres aos membros de instituição. Um deles é o dever de esclarecimento, através do qual o membro deve atuar na educação em direitos, informando as partes sobre todas as causas e consequências do pedido, visando evitar que a necessidade de litigar e o desejo de assumir determinadas posturas dentro do processo seja fundada na falta de informação ou em uma verdade prejudicial a sua situação enquanto membro pertencente a um grupo social.
Vale destacar aqui que membros da Defensoria, diferente de juízes, não gozam do atributo de imparcialidade. Ao contrário, têm sua postura muito bem definida dentro do processo, delineada pelos ditames constitucionais, não podendo o Defensor Público revestir-se da perigosa neutralidade com relação ao direito dos assistidos ou abraçar causas que venham a contrariar interesses de grupos vulneráveis.
Não obstante, se ainda assim, surgirem dúvidas internas a respeito de questões de mérito de determinados assuntos, seria possível saná-las provocando órgãos com potencial para estabelecer uma política unificadora dentro da instituição, como a Associação Nacional de Defensores Pública/ANADEP ou o Colégio Nacional de Defensores Públicos-Gerais/CONDEGE.
CONCLUSÃO:
O desenvolvimento o presente estudo possibilitou compreender o processo de construção dos enunciados de teses institucionais como um mecanismo apto a contribuir com a formação de uma identidade institucional. Tal processo relaciona-se com o papel da Defensoria Pública na dinâmica constitucional marcada pela necessidade de proteção dos grupos sociais excluídos do exercício de seus direitos, uma vez que possibilita a definição de uma pauta unificada no desenvolvimento das funções do Defensor Público, por meio de ampla participação democrática.
Buscou-se, com isso, estabelecer uma noção limitadora ao princípio da independência funcional, uma vez que haveria vinculação a priori no atuar do Defensor Público em consonância com o teor do que foi abordado na tese institucional, salvo excepcional necessidade de agir de modo diferente para beneficiar os grupos vulneráveis envolvidos no litígio. Porquanto, o papel do Defensor Público, enquanto agente de transformação social, demanda uma atuação conjunta em torno de um fim comum, razão pela qual não se admite uma atuação descoordenada e individualizada que destoe da proposta constitucional ou que abrace causas que embora possam trazer retornos individuais venham a prejudicar uma coletividade de pessoas vulneráveis.
Nesse sentido, as garantias institucionais conferidas aos Defensores Públicos reforçam o seu papel não só de agente garantidor de direitos individuais, mas, sobretudo, o papel de guardião de interesses coletivos das populações que estão à margem do contrato social. A atual modelagem institucional da Defensoria Pública é resultado de um movimento coletivo de busca de uma solução para o problema da desigualdade social em suas varias espécies e indica um desafio pela sua afirmação no sistema de justiça como resposta aos ataques que a instituição vem sofrendo no cenário nacional com a resistência no cumprimento do que determina a Constituição.
Espera-se, portanto, contribuir para uma reflexão a respeito do assunto, sugerindo a necessidade de uma adesão maior à construção dos referidos enunciados de teses pelas Defensorias Públicas de todo o Brasil reforçando a possibilidade de se conjugar sua aplicação com o princípio da independência funcional.
1 Nesse sentido, ver STF – ADPF: 307 DF, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 19/12/2013, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-060 DIVULG 26-03-2014 PUBLIC 27-03-2014
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3 Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu.Sua cor não se percebe.Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura. Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. (A Flor e a Náusea. Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987. A rosa do povo/ Carlos Drummond de Andrade. — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012)
4 No entanto, existem, ainda, pelo menos, outros três modelos jurídico-assistenciais: o Pro Bono; o Judicare e o sistema Híbrido ou Misto. No sistema Pro Bono advogados privados, sem contraprestação pecuniária, atuam na defesa judiciária dos vulneráveis. Já no sistema judicare a assistência prestada por advogados privados é remunerada pelo poder público. Por sua vez, os modelos mistos mesclam as fórmulas dos sistemas mencionados acima. Lamentavelmente, a insuficiência de Defensores Públicos em alguns estados do Brasil e o alto índice de vulnerabilidade social, sobretudo no sistema processual penal brasileiro, permite identificar resquícios do sistema judicare, ainda que de forma declaradamente inconstitucional, através da indicação e remuneração pelo poder público de advogados dativos, nomeados caso a caso dentro do processo, para defender pessoas economicamente necessitadas, sob pena de se permitir a perpetuação de graves violações a dignidade da pessoa humana dentro do sistema prisional. Sobre o assunto cabe citar o teor das Ações Declaratórias de Inconstitucionalidades (ADIs) 3892 e 4270 que declararam inconstitucionais as normas do Estado de Santa Catarina que dispunham sobre a advocacia dativa. No referido julgamento ficou consignado que tal situação deve ser temporária e somente pode ocorrer de forma suplementar, sendo essa pauta bem delineada pela Lei Complementar 80/94, que contém normas gerais obrigatórias para a organização da defensoria pública pelos estados. A conclusão final da ação foi a de que tal situação só ocorreria em razão de uma “omissão contumaz” do Estado de Santa Catarina quanto à implantação da Defensoria Pública, violando, “de modo patente”, o direito das pessoas desassistidas, “verdadeiros marginais” do sistema jurídico nacional. Outrossim, restou claro que a estruturação da Defensoria Pública “não se trata de uma questão interna dos estados membros, na uma questão nacional que interessa a todos dada a relevância das defensorias públicas como instituições permanentes da República e organismos essenciais à função jurisdicional do estado”. Por outro lado, não se pode ignorar que o sistema de defensoria dativa, além de inconstitucional, muitas vezes acaba por penalizar também os advogados dativos quando exercem a advocacia por valor bem inferior ao da tabela da Ordem dos Advogados do Brasil, havendo situações em que esses nem chegam a receber. Além disso, a falta de estrutura no desenvolvimento do mister, como cópias, impressão, combustível, telefone e etc a cargo do advogado, que, muitas vezes, terminam transferindo aos assistidos.
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6 Saindo da esfera normativa, o Supremo Tribunal Federal atribuiu à Defensoria Pública o status de preceito fundamental e deixou consignado que não ela pode ser vinculada a qualquer outra estrutura do Estado. No mesmo sentido, a doutrina institucional vem explicitando que não há qualquer vinculação ou subordinação da Defensoria aos Poderes do Estado, sendo reforçado como expressão explicativa tratar-se de uma instituição extrapoder, nas palavras de Humberto Quiroga Lavié (LAVIÉ, Humberto Quiroga. Estudio analítico de la reforma constitucional, Buenos Aires: Depalma, 1994, pág. 65.) citado por Diogo Esteves e Franklyn Roger. (ESTEVES, Diogo; ALVES SILVA, Fraklyn Roger. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 2014 Editora: Gen Metodo. Pág 75.)
7 Nesse sentido, importante mencionar a decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que deixou consignado que Defensores públicos não são advogados públicos, devem seguir regime disciplinar próprio e têm sua capacidade postulatória decorrente diretamente da Constituição Federal, portanto, não precisam cumprir regras do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil. (RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 61.848 – PA (2015/0175233-4) Ainda sobre o assunto, tramita no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5334) contra o artigo 3º, caput e parágrafo 1º, da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia), que impõe aos advogados públicos inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
8 Disciplinada por meio da LC 988/2006 em conjunto com a Resolução nº 120/2009 do Conselho Superior.
9 Disciplinada por meio da LC 136/2011.
10 Disciplinada por meio da Resolução nº 593.
11 Disciplinada por meio da Portaria n. 5/2016, da Escola Superior da Defensoria Pública (ESDEP).
12 Vale lembrar que a Defensoria Pública, apesar de todos os ataques que vem sofrendo, no ano de 2017, em pesquisa realizada pela GMR Inteligência e Pesquisa, encomendado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) foi apontada como instituição mais importante do país. A pesquisa foi realizada entre 9 de março e 29 de maio e ouviu 5.035 pessoas de todo o País, de todas as classes sociais e idades, e tem nível de confiança de 95%. Manter essa identidade institucional na luta em pro dos mais desfavorecidos é de suma importância para o reconhecimento e crescimento da instituição.
13 Nesse sentido, não seria razoável, por exemplo, que determinada (o) defensora (r ) viesse a ingressar com uma ação coletiva contra a educação sexual nas escolas para criança, sob o fundamento de se tratar da polêmica “ideologia de gênero”, uma vez que tal educação reforça o respeito às diferenças entre crianças e educa-las para a vida.
14 A teoria do órgão, idealizada pelo alemão Otto Gierke, reza que a atuação do agente público deve ser imputada ao órgão que ele representa e não à sua pessoa. Assim, sendo o órgão uma divisão das pessoas que compõe a Administração Pública direta ou indireta, a atuação dos servidores públicos é atribuída diretamente à pessoa jurídica para a qual trabalha.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Carlos Drummond de, 1902-1987. A rosa do povo/ Carlos Drummond de Andrade. — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012
AMORIM, Ana Môncia Anselmo de. O acesso à justiça como direito fundamental e defensoria pública/Ana Mônica Anselmo de Amorim – Curitiba: Juruá, 2017
CARVALHO, Amilton Bueno de. Defensoria Pública: entre o velho e o novo – Por Amilton Bueno de Carvalho. Disponível no site “Empóriododireito”. Acesso em 14/11/2017
COSTA, Domingos Barroso da. Educação em direitos e defensoria pública: cidadania, democracia e atuação nos processos de transformação política, social e subjetiva./ Domingos Barroso da Costas, Arion Escorsin de Godoy. Curitiba: Juará, 2014
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