Ementa: Exposição da XII Jornada da Lei Maria da Penha. Feminicídio. A necessidade de adequação da atuação do sistema de justiça criminal à perspectiva de gênero nas mortes violentas de mulheres. Investigação, processo e julgamento com perspectiva de gênero de mortes violentas de mulheres. Boas práticas em rede de enfrentamento, investigação e monitoramento dos casos de feminicídio. Elaboração e aprovação da Carta da XII Jornada da Lei Maria da Penha.
1 – Relatório
Nos dias 9 e 10 de agosto de 2018, realizou-se a XII Jornada da Lei Maria da Penha para tratar do tema Feminicídio, atualmente prevista no rol das qualificadoras do crime de homicídio doloso, Lei 13.104/2015. O Evento contou com a participação de magistrados, desembargadores, promotores, defensores públicos, delegados de polícia e peritos criminais.
Foram abordados os seguintes tópicos: o que é feminicídio; a necessidade da atuação do sistema da justiça criminal no combate as mortes violentas de mulheres; investigação, processo e julgamento; práticas de prevenção, enfrentamento e monitoramento dos casos de feminicídio; e a aprovação da Carta da XII Jornada da Lei Maria da Penha que se encontra anexa.
Por fim, aos participantes do evento foram distribuídos (doc. anexos): as Diretrizes Nacionais do Feminicídio/2016, a cartilha do CNJ sobre o Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha/2018, o Violentômetro (panfleto) elaborado pela Coordenadoria da Mulher em situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário da Paraíba, e dois casos práticos (investigar com perspectiva de gênero e a possibilidade da coexistência das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio).
2 – Fundamentação
Durante a exposição do primeiro tema da programação (a necessidade de adequação da atuação do sistema de justiça criminal à perspectiva de gênero nas mortes violentas de mulheres) buscou-se informar que o feminicídio decorre de mortes violentas de mulheres motivadas em razão do gênero, caracterizada pelo desprezo, ódio, inferioridade, vulnerabilidade, ou seja, simplesmente por ser do sexo feminino.
As razões que levam a prática de mortes violentas de mulheres se desencadeiam na desigualdade estrutural de poder de inferiorização e subordinação, o sexo da vítima, o desprezo, os papéis sociais que lhe são atribuídos e o fenômeno social e cultural.
Debateu-se o processo histórico dos direitos das mulheres, por meio de várias normas internacionais e nacionais, por exemplo, a Convenção do Belém do Pará e a Lei Maria da Penha que expressam a violência contra a mulher e violação de direitos humanos. Os índices crescentes de mulheres mortas por ano em razão do gênero chegam a 8% a 10% dos homicídios.
A partir da década de 1970, época em que o machismo era mais acentuado, manifestações feministas buscaram descartar a tese “legítima defesa da honra”, com os dizeres: “quem ama não mata”. Esta tese era muito utilizada no Júri e praticamente infalível na absolvição do acusado. Apenas em 1990, a legítima defesa da honra foi rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça.
Já na fase de investigação policial, os peritos alertam que a investigação deve ser mais aprofundada, para que se possa enxergar não só os dados do local, mas também a violência simbólica (destruição de documentos, objetos e roupas), isto é, valorar todos os objetos de investigação. O laudo deve constar se a vítima estava vulnerável, se há cicatrizes antigas para demonstrar violências ocorridas anteriormente. Os crimes de homicídios com barbaridades (excesso de facadas, tiro nas partes íntimas), podem configurar a prática de feminicídio.
Muitos suicídios são mascarados para encobertar a prática de feminicídio. Além disso, a tese de crime passional (motivado por sentimentos de afeto) deve ser vista com ressalva, por muitas vezes configurar conduta de ódio contra a mulher.
No estado do Piauí, instalou-se a primeira Delegacia de Polícia especializada em feminicídio e, no ano de 2015, criou-se a metodologia para apuração na investigação do crime de feminicídio, encabeçada pela Dra. Eugênia Nogueira do Rêgo Monteiro Villa, Delegada de Polícia do Estado do Piauí.
Com base na única oportunidade, o delegado de polícia deve explorar ao máximo os vestígios do delito, o mais rápido possível, sob o risco de perda das provas. Na prática do sistema judicial, não se dá muita atenção ao crime de ameaça, delito que não raramente sinalizada à possibilidade do cometimento de feminicídio.
A prática do feminicídio acontece na maioria das vezes no período noturno dos finais de semanas e sem o devido funcionamento de plantão nas delegacias de polícia da maioria do brasil.
Na América Latina é onde ocorre o maior número de casos de feminicídios. O Sistema Judicial e de Segurança Pública devem possuir uma visão de lente de gênero, para que se possa identificar no caso concreto, a prática de violação de gênero. Fator importante na descoberta da violação de gênero é dar atenção à vítima, parentes, amigos e vizinhos para apurar se houve alguma agressão anterior contra a mulher.
No plenário do Tribunal do Júri deve ser respeitado o direito à memoria da vítima, a fim de que não haja exposição da vítima quando se sustenta, por exemplo, estereótipos ou linguagem de natureza discriminatória.
O direito a plenitude de defesa não é absoluto, e as partes devem agir com ética e respeito aos outros direitos fundamentais. Ao magistrado cabe o dever de controlar os debates no Júri, e analisar as perguntas elaboradas na instrução não ofendem a memória da vítima.
Todos os profissionais que de alguma forma lidam com a violência de gênero devem ir além do conhecimento comum, aprofundar na investigação ou entrevista na busca de saber se houve ou não violência de gênero.
A atuação da Defensoria Pública é de suma importância em favor das mulheres vulneráveis nas situações de violência de gênero (regras de Brasília), a fim de garantir o acesso à justiça, à verdade e à memória da vítima.
O direito a ampla defesa do acusado deve ser limitado em frente aos direitos humanos das mulheres, além de questões éticas no atuar do Defensor Público. Na área Cível, a Defensoria Pública busca um atendimento humanizado e a garantia dos direitos à indenização (danos moral, estético), guarda de filhos, pensão alimentícia, dentre outros.
Ainda não há precedentes de violência contra transexuais e travestis, consubstanciado na violência de gênero a configurar o transfeminicídio. Durante as oficinas sobre investigação, processo e julgamento com perspectiva de gênero de mortes violentas de mulheres, discutiu-se a violência de gênero e de que forma colocar em prática em cada realidade dos estados-membros.
Essa discussão surgiu a partir de um estudo caso, sob a ótica da investigação com perspectiva de gênero, com questões a serem abordadas, tais como: a ausência de utilização da Lei Maria da Penha, realização de laudo pericial na residência da vítima, a relevância do laudo de necropsia da vítima para comprovar ferimentos recentes ou não, e se a investigação foi conduzida com perspectiva de gênero.
Ponto importante é saber diferenciar os casos de feminicídios quando a violência não decorrer de vínculo familiar, mas sim do ato de menosprezo ou discriminação à condição de mulher, nos termos do artigo 121, § 2-A, inciso II, do CP.
Assim, a prática de feminicídio sem relação íntima de afeto pode ocorrer: via agressão sexual no assassinato de uma mulher por um estranho; por conta de racismo; de identidade de gênero da transexual; por orientação sexual de uma mulher lésbica; tráfico de mulheres, dentre outras formas.
Outro estudo de caso foi à análise de um Habeas Corpus impetrado no STJ, em que o recorrente alegava bis in idem na coexistência das qualificadoras do motivo torpe e feminicídio. Em decisão recente (julgado em 24/4/2018), a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que é perfeitamente possível a incidência da qualificadora do feminicídio juntamente com o motivo torpe, tendo em vista que a primeira possui natureza objetiva (dispensa o ânimo do agente), e a segunda tem natureza subjetiva.
Quanto às boas práticas em prevenção de violência, há o projeto Cine Mulher, que trata da apresentação de filmes para sensibilizar a comunidade a refletir criticamente a violência de gênero. Também realizam debates sobre violência de gêneros, orientam os autores por meio de entrega de cartilhas e fôlderes, realizaram atendimentos com assistentes sociais, psicólogos e educadores, além de estimular o fortalecimento da família.
Outro fator importante é a organização de uma equipe capacitada em abordar a violência de gênero, a fim de divulgar a informação junto aos órgãos empregadores com maior incidência de homens que praticaram violência de gênero, por exemplo, em construções de obras.
Ainda na prevenção de violência de gênero, buscam-se: companhas de caráter permanente, revistas, vídeos, gibis, cordéis, teatros, rodas de debates; qualificação dos profissionais da saúde, no intuito de identificar a violência de gênero; grupos para homens que possuem medidas protetivas; palestras em universidades e hospitais; implementação de educação sobre sexualidade nas escolas com o objetivo de ajudar os jovens no relacionamento amoroso; tudo em prol de uma sociedade mais esclarecida e consciente de que a mulher tem o direito de ser respeita na sua integridade física, mental e social.
No que diz respeito às boas práticas em rede de enfrentamento à violência contra as mulheres, deve haver a integração dos órgãos públicos e análise do público alvo em cada estado da federação.
Existe do Distrito Federal, o botão de pânico (viva flor) para uso da vítima que esteja na iminência de ser violentada. Em caso de agressão física, a mulher é encaminhada ao serviço psicossocial e a assistência jurídica. O Conselho Nacional de Justiça possui documentos sobre o enfrentamento no combate a violência de gênero: Portaria 15/CNJ, Meta 8/CNJ e Protocolos de Intenções nº01 do CNJ/CFP.
Ao final do evento, aprovou-se a XII Carta da Jornada da Lei Maria da Penha, com as seguintes propostas: implementação de ações e sugestões constantes nas Cartas anteriores; capacitação integrada dos órgãos competentes sob a perspectiva de gêneros, com observância nas Diretrizes Nacionais de Feminicídio; interoperabilidade dos sistemas informáticos para classificação dos casos de feminicídio; padronizar trabalhos de investigação, inclusive nos plantões judiciais; recomendar aos Tribunais de Justiça onde houver mais de uma Vara do Júri, a especialização de uma delas nos crimes de feminicídio; e recomendar aos atores do sistema de justiça e de segurança pública que o atendimento às mulheres vítimas de violência, para fins de medidas protetivas, não seja condicionado à tipificação dos fatos como infração penal.
3 – Conclusão
Diante da crescente violência de gênero com mortes impetuosas contra mulheres, a sociedade e os competentes órgãos de atuação devem estar informados e capacitados para prevenir e, caso ocorra à prática de feminicídio, a investigação deve ser realizada com um olhar na violência de gênero, sem deixar de lado na fase processual, o compromisso com a ética e o respeito aos direitos fundamentais do acesso à justiça, à verdade e à memória da vítima.
Araçagi-PB, 17 de agosto de 2018.
Marcos Freitas Pereira
Defensor Público